terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Marília Pêra por Nelson Motta

Eu sei que estes dois nomes acima são, provavelmente, os nomes de dois desconhecidos para vocês, mas uma vez mais tenho de lamentar aqui a morte - e aproveitar para vos dar a conhecer a atriz - de uma das maiores do mundo da interpretação. E não, não vou dizer uma das grandes atrizes brasileiras, não o vou dizer porque isso seria reduzir o talento da Marília a um país ou a um continente, e o talento da Marília não tinha fronteiras.
Quando li a notícia da partida dela senti um vazio, talvez porque sempre tive a esperança de a poder ver de novo em palco e sentir tudo o que ela nos fazia sentir quando interpretava. Deixo-vos o texto que o ex-marido (o também enorme Nelson Motta) escreveu para ela agora que ela partiu. Contudo, antes uma boa entrevista, onde a possam ver como ela era: só talento e maravilha. (Podem encontrar no youtube um monte de excertos de interpretações dela, desfrutem!)


“Viva Marilia !
A primeira vez que vi Marilia, naturalmente, foi no teatro. Ela era loura, tinha 26 anos e interpretava uma vedete bagaceira e mulher de um gangster de araque numa paródia de teatro de revista hilariante chamada A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, escrita por Bráulio Pedroso e com músicas de Roberto e Erasmo Carlos, que lotou o Teatro Ipanema durante meses e foi um dos maiores sucessos de 1970. Além de rir muito, fiquei encantado com aquela magrela que se fazia de gostosa, tão divertida e desbocada, que cantava, dançava e representava com tanta alegria e sex-appeal. A primeira vez com Marilia não se esquece.
Um ano e meio depois estávamos casados. Alternando temporadas no paraíso e no inferno durante oito anos movidos a fortes sentimentos, tivemos duas filhas e testemunhei a trajetória e o crescimento de uma das maiores atrizes da nossa história, que levou emoção, alegria e consolo a milhões de pessoas que choravam e gargalhavam com seus personagens, se comoviam com seus tipos sofridos, se aterrorizavam com as suas vilãs e malvadas. Marilia vai fazer muita falta porque era muitas, cada uma melhor que a outra. E convivi com várias delas. No teatro, seu território sagrado e seu campo de batalha, no cinema, na televisão e na vida real, que era o seu personagem mais complexo e imprevisivel.
O papel de mãe tambem era muito dificil para a diva. Ela amava as meninas e se esforçava, entre seus muitos trabalhos, em preparar para a vida do jeito que podia e sabia. Disciplinada e disciplinadora, Marilia reclamava que eu era muito liberal e permissivo com elas e, de gozação, dizia em público que eu era uma verdadeira mãe para as meninas. E todos os Dia das Mães me ligava para desejar em tom de ironia “felicidades no seu dia” e soltar uma gargalhada.
Para mim, o seu melhor papel foi Maria Callas em “Master Class”, uma diva amadurecida e amargurada ensinando a alunos da Julliard School of Music sobre a vida, a arte e o amor, com tanta técnica e emoção que teria feito chorar a própria Maria Callas.
Entre as malvadas, amei – e tive muito medo – da megera Perpétua de “Tieta” e da maligna e medonha Juliana do “Primo Basilio”. Pensar que uma mulher daquelas dorme ao seu lado é de tirar o sono.
Marília gostava de cantar, de dançar, de marido, de filhos, de amigos, de sexo, de dinheiro, de luxo, de rir, de silêncio, mas amava mesmo, acima de todas as coisas, o teatro, que foi sempre a sua prioridade de vida. Talvez por isso foi tão alto e tão fundo e irá tão longe.
Com 39 anos, por sua arrebatadora interpretação de uma prostituta envolvida com menos de rua em “Pixote” recebeu o premio de “melhor atriz do ano” pela Associação Nacional de Criticos dos Estados Unidos em 1981, e tambem da associação de criticos de Nova York e de Los Angeles, que consagraram uma atriz sul americana desconhecida concorrendo com as grandes estrelas americanas e que nem sequer era bonita para os padrões locais. Puro talento.
Marilia era tão atrevida que representou Coco Chanel em português para franceses em Paris, com legendas, e fez várias apresentações lotadas com críticas que a consagravam como uma das grandes atrizes de nosso tempo.
Nos encontramos e desencontramos muito pela vida, nos ultimos anos éramos muito amigos, vivemos juntos muitas alegrias e dores. Há dois meses, Marilia me pediu uma música para o disco que estava gravando na Biscoito Fino. Me lembrei de uma linda valsa do maestro Lyrio Panicalli, dos anos 60, que Leila Pinheiro havia me mostrado há muito tempo. E fiz a letra.
O título original da versão instrumental de Lyrio era “A última valsa”, mas, sabendo que Marilia estava doente, achei melhor trocar para “Sonho de valsa” – e ela pensou que a música sempre se chamou assim e adorou. Pena que não teve tempo de gravar. Fica como um gesto de amor, respeito e admiração. E saudade.

A última valsa
Luz do amanhecer
nas sombras do jardim,
um cheiro de jasmim me faz viver
de novo um tempo tão feliz.
Tardes de verão
de tantas emoções,
um beijo, uma canção,
e um sonho de amor sem fim

O amor não trás a paz
o amor quer sempre mais
é a valsa que nos faz dançar,
bater mais forte os corações.
A lua encontra o mar,
a sombra esconde a luz,
teu corpo enfim encontra o meu
e dança ! dança mais !

Valsas tropicais
bailando na memória,
nos golden rooms do sonho,
nos salões, à luz da lua a beira mar.
Noites de verão
que nunca esquecerei,
que não vivi, sonhei,
como a valsa que não dancei,
que não vivi, sonhei,
como a valsa que não dancei.”

Nelson Motta

6 comentários:

Anónimo disse...

Lamento saber da morte de Marília Pêra, e não a ter conhecido bem como tu, Susana.

Lembro-me agora deste poema de Drummond recitado por ela, e cá deixo para quem gostar de poesia.

Pedro

https://m.youtube.com/watch?v=G3LIMueC124

Susana disse...

Olá Pedro!!!
Que bom ver que continuas a entrar aqui e a participar.
Gosto muito de teatro, fascina-me o mundo da representação em geral e há pessoas, nesse mundo, que são especiais. A Marília era uma dessas pessoas.
Obrigada pelo poema, é muito bonito! De certeza que os seus colegas vão gostar.

Já agora, alguma vez a viu na TV ou cinema?
A Juliana do Primo Basílio é uma personagem fantástica, que desde que ela a interpretou passou a ter a cara dela.

Mas há uma cena de uma minissérie da Globo chamada Incidente em Antares que me parece de uma beleza e delicadeza, que me fez chorar como uma Madalena e sorrir ao mesmo tempo. Aconselho-vos a ver esse momento único da ficção televisiva brasileira (está no departamento). A Marília, fantasma de uma prostituta acabada de morrer, contracena com a Betty Faria (outra das grandes do Brasil), colega de profissão à beira do abismo. É notável o trabalho de interpretação das duas.

Pedro L. Cuadrado disse...

Obrigado pela dica, Susana!

Abraço,

Pedro

Unknown disse...

...e uma nova descoberta para mim também. É pena não a tem conhecido antes, mas como todas as pessoas extraordinárias, muito melhor que a sua vida é aquilo que deixam nas vidas dos demais. Segundo parece, pela entrevista da tv que vi, mesmo agora, esta Marília era muitas, muitissimas Marílias e cada uma delas única e intensa.

Já sei o que vou fazer neste Natal, também, ver teatro em português!

Obrigada, Susana.

Susana disse...

Pedro Cuadrado! Eu pensava que era o meu aluno Pedro do ano passado. Que bom (e que responsabilidade) ver que nos segues por aqui. Quem sou eu para te dar dicas???? ;)

Mas, sim, a Marília - como todos os grandes que nos entram em casa através da ficção e são capazes de nos tocar o coração - era como se fosse da família.

Susana disse...

Lupe, que alegria ver o seu empenho e a sua vontade de se embarcar em tudo o que seja o mundo da lusofonia. É uma lufada de ar fresco ter alunos tão trabalhadores como a Lupe.

Veja a Marília, desafio-a a não se apaixonar por ela. Uma dica: Veja os vídeos da peça Masterclass em que há momentos em que vemos a Callas e não a Marília (eu tive a sorte de ver a peça duas vezes: uma com a Marília e outra com a Rita Ribeiro, e vê-la-ia uma e outra e outra vez, a peça é maravilhosa).